Neurociência – O que é e o que não é?16 min de leitura

Decidimos revisitar este conceito para, posteriormente, falamos sobre o que não é Neurociência e esclarecer algumas abordagens e práticas duvidosas.

A Neurociência é um campo interdisciplinar da ciência que estuda o sistema nervoso, podendo ser dividido em três eixos: cognitivo, biológico e computacional. O eixo cognitivo é composto por pesquisas em humanos e animais, tendo como foco a cognição e os seus processos, como percepção, atenção, memória, aprendizagem, dentre outros. O eixo biológico busca entender as bases biológicas dos processos neurais; normalmente, as pesquisas são feitas em animais (como ratos e camundongos), mas também são estudadas moléculas, substâncias, células e seres humanos. O eixo computacional se vale de métodos matemáticos e computacionais para simular ou mimetizar os processos do cérebro biológico.

Hoje, temos técnicas que nos permitem realizar diversos experimentos, as variáveis são cuidadosamente controladas para que os resultados finais sejam os mais conclusivos possíveis, e o avanço tecnológico tem sido essencial, embora ainda tenhamos muito a desenvolver. Dentre as técnicas para análises de pesquisas do eixo cognitivo, aqui nosso maior interesse, temos as de neuroimagem, as de psicofisiologia, eletrofisiologia e, até mesmo, avaliações neuropsicológicas.

Figura 1. Neuroimagem

Podemos dizer que, no geral, as técnicas de neuroimagem podem ser classificadas quanto à sua resolução temporal e espacial (o quão precisos os métodos são para avaliar o momento em que os sinais acontecem no tempo e a sua localização no espaço, respectivamente) e se são invasivas ou não invasivas, além de cada uma ser capaz de registrar uma série de variáveis. Cada uma possui suas vantagens e desvantagens e são adequadas para cada situação, assim como possíveis de serem combinadas entre si. Podemos destacar algumas como o Eletroencefalograma (EEG), Ressonância Magnética Funcional (FMRI), Ressonância Magnética Estrutural (MRI), Espectroscopia no Infravermelho Próximo (NIRS), Eye Tracker, entre outras. A psicofisiologia avalia a resposta do organismo aos estímulos e comportamentos e as reações biológicas relacionadas, como dilatação da pupila, produção de suor, batimentos cardíacos, pressão arterial, etc. A eletrofisiologia registra a atividade elétrica produzida pelos organismos, como nos neurônios, pele e músculos. Já as avaliações neuropsicológicas consistem em testes, protocolos e questionários aplicados a um paciente que possui algum transtorno ou lesão para inferir qual é o local afetado no cérebro que produz tais problemas.

Nós já vimos a importância das pesquisas em Neurociência e suas ferramentas mais comuns, mas… e seus impactos na sociedade?

As pesquisas científicas buscam encontrar aspectos que tragam benefícios consideráveis para a população, para isso uma série de critérios deve ser seguida, afinal, para cada experimento, existem variáveis que devem ser bem controladas e delimitadas, de forma que o estudo extraia de fato as informações pretendidas.

Se analisarmos, por exemplo, um conjunto de estruturas encefálicas e como a integridade da atividade entre elas garante que o paciente não apresente sintomas de uma doença específica, se não levantarmos um conjunto de fatores que pode interferir nessa análise, como condições psiquiátricas do paciente, condições de saúde física, qualidade de vida, gênero, idade, histórico familiar, possíveis doenças crônicas, entre outras, os dados serão incompletos para chegar a conclusões. É preciso um controle e um planejamento das variáveis independentes (fatores que o pesquisador estabelece e controla) e dependentes (fatores que dependem da manipulação das variáveis independentes).

Além disso, é importante que os estudos sejam disponibilizados para as pessoas, afinal, o conhecimento científico não deve ficar limitado ao ambiente acadêmico. É praxe no meio científico a publicação dos estudos em revistas especializadas, cujos artigos antes de serem aceitos são revisados por estudiosos da área (processo chamado peer review ou revisão por pares). Como realizar um bom estudo que possa ser aprovado para publicação é um trabalho árduo, a publicação é o que garante aos cientistas o prestígio e a sua contribuição para o conhecimento da humanidade. Porém, até pouco tempo, poucos cientistas se importavam com a divulgação dos achados para o grande público — os artigos científicos são de difícil compreensão. Para isso, existem os meio de divulgação científica, que consistem em uma forma de tornar acessível esses novos conhecimentos à comunidade leiga por meio de revistas, jornais, sites, blogs, vlogs, etc.

Sabendo que Neurociência é bem criteriosa e realiza vários achados que podem ser úteis a todos, a única atuação de um profissional formado na área deve ser dentro de laboratórios ou salas de aula de universidades ou de cursos especializados? Não!

Embora se trate de um curso novo no Brasil e pouco se conheça de suas atuações no mercado, elas existem e são muitas. O Neurocientista é capaz de atuar em diversos âmbitos do mercado, aqui classificados em 11 áreas, sendo elas Economia, Ética e Direito, Arte e Design, Saúde Mental, Aprendizagem, Fatores Humanos, Motricidade, Marketing, Laboratório e Clínica, Computação e Transumanismo.

O neurocientista é capaz, portanto, de compreender melhor processos cognitivos e comportamentos por meio dos estudos das estruturas que compõem o sistema nervoso e suas funções, o que torna de fato sua aplicação muito ampla.

Figura 2. Processo cognitivo

É importante salientar que o neurocientista não substitui neurologistas, psiquiatras ou psicólogos; o neurocientista tem o papel de apresentar uma visão interdisciplinar para equipes de profissionais de diversos segmentos.

A Neurociência, como vimos, é hoje um conhecimento estratégico para indivíduos e organizações. Ela fornece meios de lidar melhor com as situações que passamos ou, ao menos, favorece o estabelecimento de analogias e relações, além de estimular um pensamento mais científico sobre a realidade.

Em conjunto com outros conhecimentos, como os organizacionais, é possível avaliar diversos problemas a partir de uma perspectiva que integra a neurociência à resolução de problemas de forma consciente, levando em consideração como as pessoas funcionam, entendendo suas limitações e pontos fortes. Os indivíduos também podem incorporar essas práticas e pensamentos ao seu cotidiano para manter a qualidade de vida, saúde mental e rendimento.

Agora… o que não é neurociência?

As falácias são argumentos sem validade lógica; uma das formas mais comuns é o chamado “argumento de autoridade” — as propagandas são um exemplo, pois costumam usar coisas como “9 em 10 especialistas aprovam este produto”. Esse tipo de argumento é considerado falacioso porque a autoridade não é isenta de cometer erros lógicos, e estes não se justificam por serem provenientes de uma autoridade. Entretanto, é virtualmente impossível não cometer esse tipo de falácia, pois não existem meios de conhecer sobre todos os assuntos o suficiente para não depender da palavra de autoridades: sempre confiamos nos especialistas em alguma instância. O que é possível fazer para ter certo grau de autonomia e identificar informações equivocadas mesmo que elas venham de autoridades? Vamos tomar a Neurociência como exemplo.

Dentre os estudantes do bacharelado em Neurociência da Universidade Federal do ABC cunhou-se o termo “neurobalela” para as diversas informações equivocadas que costumam circular sobre o sistema nervoso. Por ser um campo altamente interdisciplinar e com objeto de estudo extremamente complexo, não é raro se deparar com as ditas “neurobalelas”. É possível, então, adotar uma série de filtros para avaliar afirmações e conceitos ditos neurocientíficos. Lembrando que esses filtros funcionam como uma espécie de navalha/rule of thumb e não devem sempre ser levados ao pé da letra.

Desconfie de modelos e afirmações simplórias

O cérebro humano é considerado a coisa mais complexa em todo o Universo conhecido. Existem muitos modelos que o dividem em subsistemas, mas também existem conceitos e modelos equivocados, como o chamado “modelo dos três cérebros”, que o divide em três partes: reptiliano, límbico e neocórtex. Esse modelo, hoje muito usado pelo ramo do Neuromarketing, é ultrapassado e não é utilizado pela Neurociência: existem evidências amplamente aceitas que mostram que o modelo não corresponde à realidade. Logo, é prudente pesquisar mais a fundo quando esses conceitos muito simples são utilizados.

Cuidado com “hackear o cérebro” ou “potencialize sua mente”

Essas alegações costumam acompanhar métodos de estudo, produtividade, ampliação da criatividade e até mesmo suplementos alimentares. Em geral, o que um neurocientista recomenda para essas questões não envolve nada mirabolante: ele provavelmente recomendaria exercício físico, ter boas relações sociais, uma alimentação balanceada, tocar um instrumento, evitar uso de computador e celular próximo da hora de dormir, etc. Os suplementos em especial são controversos, pois muitos não têm eficácia comprovada, e ingerir nutrientes não significa que eles serão aproveitados pelo seu corpo, pois a metabolização desses depende da forma de administração e composição química do veículo/excipiente farmacológico (líquido ou sólido, respectivamente, que o nutriente está disperso) e outros nutrientes que o acompanham.

Cuidado com o neuro-bunk!

Figura 3. Neuro-bunk

Os conceitos científicos que se encontram em livros didáticos são bem consolidados e, em geral, mais simples de se entender do que as descobertas mais recentes, que costumam ser muito específica e, portanto, possuem conceitos e vocabulário complexo. Como o diálogo entre os cientistas e jornalistas nem sempre ocorre, as descobertas noticiadas para o grande público podem conter interpretações equivocadas ou imprecisas. A neurocientista Molly Crockett é um exemplo: ela realizou um estudo com resultados que indicaram que a depleção de triptofano (um aminoácido precursor do neurotransmissor serotonina) fez com que indivíduos fossem mais propensos a se vingar quando tratados de maneira injusta. Jornais acabaram noticiando então que comer chocolate, que contém triptofano, pode ajudar as pessoas a tomarem melhores decisões. Esse tipo de afirmação não pode ser feita por ser um grande salto lógico com base nos resultados da pesquisa. Esse é o chamado neuro-bunk. Outra forma comum de neuro-bunk é o uso de imagens de cérebros para passar credibilidade e seriedade. Nesses casos, é necessário se atentar ao conteúdo, pois existem muitas coisas sem imagens cerebrais que são confiáveis e podem ser deixadas de lado e, ao mesmo tempo, conteúdos de baixa qualidade, ou controversos, com essas imagens.

Neurociência e espiritualidade?

É muito comum as pessoas associarem a Neurociência à espiritualidade por se tratar de um campo científico que estuda assuntos como comportamento, consciência e emoção. Não obstante, a Neurociência é envolta por muitos mistérios — até mesmo para os próprios cientistas. Novas descobertas são feitas a todo instante e, mesmo assim, estamos longe de entender por completo o sistema nervoso. Porém, uma coisa é certa: a Neurociência e a espiritualidade não andam juntas da forma com que as pessoas normalmente pensam. Existem estudos que investigam como é a atividade do cérebro durante atividades espirituais (oração, meditação, rituais, glossolalia, etc.), e qual o impacto dessas práticas no bem-estar das pessoas. Porém, a Neurociência não se propõe a oferecer informações sobre alma, Deus ou a espiritualidade como um todo, por não ser possível testar essas ideias experimentalmente, as quais residem, portanto, no campo da fé. Contudo, nada impede um cientista de ter sua própria espiritualidade ou religiosidade, mas é importante separar o que está em um lado ou outro. Existem alguns cientistas mal intencionados — ou apenas vítimas do viés de confirmação — que utilizam de suas credenciais para supostamente confirmar temas espirituais. Nesses casos existe um padrão claro: esses cientistas não apresentam suas ideias sobre espiritualidade para outros especialistas, mas sim para leigos, e sua linha de pesquisa formal costuma ter pouco a ver com os temas de fé, como o caso de uma neurocientista brasileira que fala que a Neurociência prova a existência de Deus, mas sua linha de pesquisa é em psicofarmacologia, sem qualquer relação com espiritualidade.

A fórmula do sucesso: neuro + o que quiser

As pessoas são muito fascinadas pelo cérebro e têm os neurocientistas e neurologistas em alta conta. Logo, surgem diversas áreas que incorporaram o prefixo “neuro”, umas com razão e outras nem tanto. Um desses usos controversos é a área de “neurovendas”, que alega usar princípios da Neurociência para ampliar as vendas de produtos. Essa área tem como base a ideia dos três cérebros já mencionada anteriormente, mas as suas alegações são coisas que já são amplamente conhecidas pelo marketing e psicologia do consumidor: os termos neurocientíficos funcionam mais como adornos ao discurso e pouco se diferenciam de princípios que bons vendedores naturalmente seguem.

Consciência quântica?

Não é só a Neurociência que sofre com interpretações equivocadas: a física também. No começo do século XX, os paradigmas da física clássica foram superados pela física quântica e pela relatividade de Einstein. Esta primeira causa grande fascinação nas pessoas, de leigos a especialistas, por conta do comportamento contraintuitivo que se descobriu nas partículas, como no caso dos fótons, que se comportam, ao mesmo tempo, como partículas e ondas, recebendo então a alcunha de partícula-onda, e Max Planck descobriu que a energia dessas partículas-onda é quantizada, ou seja, se apresenta sempre de forma discreta, não contínua como se pensava. Para entender de forma didática a diferença entre discreto e contínuo, pense em uma escada e uma rampa: você só pode subir a escada em passos discretos, pois só é possível subir ou descer em incrementos de um. Já a rampa pode ser subida em quantidades grandes ou muito pequenas. As implicações da descoberta de Planck foram muito importantes para a física, pois fundou a física quântica. Outro conceito da física, presente também na física quântica, é o efeito do observador: o mero ato de observar um fenômeno necessariamente o altera. Isso ocorre porque, para observar o movimento de um elétron (partículas da eletricidade), é necessário algum instrumento de medição que utilize outros elétrons ou fótons para detectar a partícula-alvo. Como essas partículas interagem com o fenômeno, ele é consequentemente alterado. Mesmo para medir a temperatura de uma amostra há alteração: o mero ato de colocar um termômetro já altera o seu estado. A diferença é que, em nível atômico e subatômico, essas pequenas interferências são bastante significativas. Como se tratam de conceitos complexos, surgem diversas interpretações equivocadas desses princípios, e daí formulou-se a ideia de “consciência quântica” e outros, que dizem que a nossa mente altera o nosso meio apenas pelo ato de pensar. Então a Neurociência entra na jogada, misturando a ideia previamente citada com o funcionamento do cérebro.

Essa abordagem não possui qualquer evidência científica e se assemelha a um sincretismo, pois reúne diversas crenças concomitantemente. Existem físicos e neurocientistas que, de fato, investigam alguma evidência de comportamento quântico do cérebro: como o sistema nervoso tem seu funcionamento baseado em correntes elétricas, é razoável imaginar que haja alguma forma de comportamento quântico. Contudo, acredita-se que, mesmo que tais comportamentos existam no cérebro, eles se percam muito antes de terem alguma implicação no funcionamento neural. Isso ocorre porque os estados de superposição quântica (quando as partículas se encontram em dois estados ao mesmo tempo) se desfazem muito rapidamente. Em geral, além da consciência quântica, é comum que pessoas coloquem “quântico” na frente de tudo (assim como fazem com “neuro”) para parecer mais atrativo: criaram até mesmo “cura quântica”, “massoterapia quântica”, “psicologia quântica”, etc. A criatividade é grande.

“Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”

O grande astrobiólogo e divulgador científico Carl Sagan dedicou bons anos de sua vida à disseminação do conhecimento científico e ao combate à pseudociência. Um dos princípios defendidos por Sagan, título desse tópico, serve como forma de filtrar alegações pseudocientíficas, que costumam ser grandiosas, porém com pouca ou nenhuma evidência, como é o caso da já citada “consciência quântica”: dizer que podemos alterar a realidade com o pensamento é algo extraordinário e requer, portanto, grandes evidências e justificativas.

Na ciência atual, quebras de paradigma são bastante raras em comparação com o passado, em que ideias como a teoria da evolução de Darwin e a relatividade geral de Einstein transformaram completamente seus campos: em geral, cada artigo publicado é um pequeno passo para sua determinada área, mesmo que alguns destes desmintam ou questionem artigos anteriores, de forma que as concepções se modifiquem enquanto as convenções se mantêm. Porém, nem todas as afirmações extraordinárias devem ser descartadas, já que existem conhecimentos hoje sólidos que foram considerados absurdos outrora. Um cuidado extraútil é questionar: existe alguma forma de testar essa alegação? Caso a resposta seja negativa, a questão é pouco promissora; caso contrário, pesquisadores podem elaborar métodos de abordar o tema. Existem princípios da epistemologia (filosofia do conhecimento) denominados “navalhas” que servem como regras simples para filtrar explicações pouco prováveis para determinados fenômenos. Duas dessas navalhas podem ser utilizadas em conjunto com o princípio de Sagan: a famosa navalha de Occam, onde, numa situação com duas explicações para um mesmo fenômeno, umas mais simples e outra complexa, a mais simples é preferível; a outra é a navalha de Hitchens, definida pela frase “O que é afirmado sem evidência pode ser dispensado sem evidência”, que reafirma a importância das evidências para afirmações com valor informativo.

Tema: Neurociência

Subtema: Neurociência: a superficialidade da prática como argumento de venda

Objetivo: NeuroLiderança, Coaching, Coaching nas Empresas, Melhores Práticas, Desenvolvimento Organizacional.

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O sistema de frenagem do cérebro – Parte 1: As diferentes formas de autocontrole

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